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bolhas de sabão estouradas aos setenta e três anos de idade


"vai passar uma... coisa.
E você não pode ficar no meio"
essa coisa... é um corpo
um corpo morto
carregado por seis braços
um corpo que eu vi sem vida
dentro de uma caixa grade,
depositário de morte
que acolhe aquilo
do qual todos fogem
um corpo que sangra ainda,
talvez, eu não sei
73 anos perfurados
inúmeras vezes...
por um homem:
seu irmão.

Eu não a conhecia,
eu não o conheço
tampouco essas pessoas
sei quem são.
Registro meu nome no livro
que registra os que presenciam
o fazer-se real da morte
não enquanto morrendo,
tampouco enquanto
possibilidade: morrer.
Mas enquanto concretizado,
executado, esgotado:
morreu.

Assassinada:
não foi "simplesmente"
morte.
Foi "de repente"
morta.
Alguma coisa interferiu
no ciclo dos acotecimentos
que rege a Existência.

Me sinto intrusa
e sei que o sou.
Intrometo-me na dor
que não é minha,
mas também o é
a compartilho,
sabendo que não tal qual.

"não estoura ela,
deixa ela voar!"
vejo bolhas de sabão
setenta e três anos de idade
vejo inúmeras bolhas de sabão
com setenta e três anos de idade cada
as vejo serem estouradas com prazer
vejo a água e o sabão se dissipando
e a bolha deixando,
aos poucos,
de existir.

Eu vi a dor
a vi chegar carregada,
ajudada,
sem nem conseguir andar.
"poderia ter sido eu"...

Eu vi um corpo
coberto de flores
e uma cabeça enfaixada
eu vi cortes num rosto
sereno e franzino
um olho roxo e inchado
sinto o cheiro de perfume
o da morte é intragável.

Uma pessoa que
eu não conheço morreu.
A morte me afeta.
E eu permito o afetar.
A quem permite afetar-se,
ao que permite o afetar:
assim seja, afete.

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